Poesias de Manual Lopes



A GARRAFA

Que importa o caminho
da garrafa que atirei ao mar?
Que importa o gesto que a colheu?
Que importa a mão que a tocou
         — se foi a criança
         ou o ladrão
         ou filósofo
         quem libertou a sua mensagem
         e a leu para si ou para os outros.

Que se destrua contra os recifes
eu role no areal infindável
ou volte às minhas mãos
na mesma praia erma donde a lancei
ou jamais seja vista por olhos humanos
que importa?
         ... se só de atirá-la às ondas vagabundas
         libertei meu destino
da sua prisão?...


Extraídos de
BARBOSA, Rogério Andrade. No ritmo dos tantãs; antologia poética dos países africanos de língua portuguesa;  Brasília: Thesaurus, 1991. 165 p. 

Página publicada em maio de 2008, com a autorização da Thesaurus.


OUTROS POEMAS

CAIS

Nunca parti deste cais
e tenho o mundo na mão!
Para mim nunca é demais
responder sim
cinquenta vezes a cada não.  

Por cada barco que me negou
cinquenta partem por mim
e o mar é plano e o céu azul sempre que vou!  

Mundo pequeno para quem ficou...


SONETO À LIBERDADE

         Primeiro tu virás, depois a tarde
         com terras, mares, algas, vento, peixes.
         trarás, no ventre, a marca das idades
         e a inquietude dos pássaros libertos.

         virás para o enorme do silêncio
         — flor boiando na órbita das águas —
         tu não verás o fúnebre das horas
         nem o canto final do sol poente.

         primeiro tu virás, depois a tarde
         sem desejos e amor. virás sozinha
         como o nome saudade. virás única.

         eu não terei a posse do teu corpo
         nem me batizarei na tua essência,
         mas tu virás primeiro e eu morro livre.


POSTAL

         deste lado da ilha
         o cais e a cidade velha
         datam de muito tempo,
         mas a cidade é um poema

         não cresceu. é sempre a mesma.
         todos os dias igual:

         o mesmo outeiro da cruz
         desterro, fontes e fortes
         igrejas, lendas, sobrados
         estreitas ruas, mirantes
         portões, sacadas de ferro
         poetas, becos, telhados
         serestas, maledicência
         saveiros, pregões de rua
         cantaria, mal-amados
         rios (chão, templo e canteiros)
         de peixe e palafitados)
         ladeiras, moças bonitas
         recato e amor nas janelas
         casarões azulejados.

         cidade em traje a rigor
         vestida à colonial
         meu mundo, meu porta-jóias
         meu bem, meu cartão postal.

         brisa de maré vazante
         sem similar no país.
         quietude pousada na água
         caminhos feitos de história.

         gente vem ver São Luís!


A PALAVRA

         te lavo e lavro
         palavra / pão
         polida pedra
         de construção

         do quanto faço
         deste edifício
         em que elaboro
         fé e ofício,

         te esculpo e bruno
         verbo/canção
         no diário labor
         de artesão.

         te louvo lume
         e pedra d'ara
         com que ergo o templo
         da flor mais cara

         e clara: poesia
         com que reparto
         os sóis do meu dia
         o suor do meu dia
         o fel do meu dia

         as mazelas do homem
         as amargas vidas
         o pão subtraído
         as pagas devidas

         a paz relativa
         a justiça rara
         a fome de todos
         a morte na cara
         da criança. o aço
         que o corpo nos cava,

         a fé o cansaço
         desta luta brava

         a fartura a poucos
         de muitos tomada

         o chão proibido
         a água negada

         o amor que rareia e
         a festa sonhada

         .....................................

         palavra larva
         semente pura
         que em mim explodes
         de sons madura,

         te lavo e lavro
         verbo / canção

         te louvo lume
         poema / pão

         manhã sonhada
         meu sim/meu não.
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Autor Blog

Aluno(a) do IFBA - Campus Santo Amaro.

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